segunda-feira, 18 de abril de 2011

Ainda somos camaradas?

O que significa camaradagem? Significa amizade? Significa irmandade? Significa companheirismo? A semântica, a parte da gramática que estuda o significado das palavras, pode considerar, na sinonímia, um de seus ramos, que são estas palavras com o mesmo significado. Um exemplo simples está na música de Roberto Carlos: “Você meu amigo de fé meu irmão camarada, amigo de tantos caminhos (...) Me lembro de todas as lutas meu bom companheiro, você tantas vezes provou que é um grande guerreiro”.

Isso na gramática, na literatura, na música, na poesia. Em política, não. Especialmente em partidos políticos, também não. Aqui uma palavra tem mais que significados: possui emblemas e é emuladora de condutas ideológicas. Portanto, quando se trata de política e ideologia convém ter o máximo de cuidado, especialmente ao ser proferida por um líder. Quando algumas palavras são empregadas na condução política elas podem se mostrar como símbolos de que a prática teve outro direcionamento.

Minha intenção com este texto é provocar um debate acerca do novo tratamento que vem sendo introduzido –sub-repticiamente, a meu ver – no seio partidário. Isso me incomoda e tem incomodado a muitos camaradas com os quais venho trocando impressões a respeito.

Tenho como sintomático que junto com essa nova forma de tratamento, que lembra os petistas, tenha havido alguns encaminhamentos coincidentes nos últimos anos. Uma delas foi a decisão do último congresso de introduzir o voto secreto para escolhas das instâncias partidárias. Desprezou-se com isso a prática da honestidade política, com a exposição de posições claras e definidas sobre cada membro-candidato, com a crítica e a autocrítica, com o debate franco, aberto. Jogou-se fora o exercício da camaradagem, em suma.

A nossa anterior forma de escolha das direções partidárias era uma de nossas diferenças políticas ante as práticas burguesas e oportunistas. Era uma das marcas do fazer política com honestidade, sem os vícios maléficos dos partidos tradicionais da política tradicional, antidemocrática. Pretendeu-se ampliar a democracia partidária, mas na verdade o que se assiste é o trilhar de um caminho perigoso.

Um exemplo: participei da última conferência regional de Mato Grosso, onde morei, em Cuiabá, até outubro de 2010. O que se viu lá foram manipulação da lista de candidatos, articulações, barganhas e concessões inaceitáveis para um partido político como o nosso. Alguns que desejavam ansiosamente ocupar postos na direção se lançaram a negociações vergonhosas. Por outro lado, municípios que conseguiram mobilizar bancadas maiores, com delegações compostas de recém-filiados eleitos pelo mesmo critério em suas conferências municipais, jogaram mais peso na conferência estadual e foram alvos dessas articulações e barganhas. O que viram esses novos filiados não foi nada diferente do que muitos deles assistiam em seus partidos de origem, alguns oriundos do espectro da direita ou oportunistas de partidos de esquerda (aliás, abandonamos por completo os critérios de aquisição partidária).

Que tipo de educação estamos dando para esses novos filiados?

Aqui no Distrito Federal, onde nasci e moro atualmente, muitos pensam no partido como um trampolim para cargos nas esferas federal e distrital. Quando cheguei e busquei iniciar minha militância em Taguatinga, cidade-satélite onde resido e onde vivem membros de minha família desde antes da inauguração de Brasília, comecei contatos com vários militantes de lá. Insistia que tínhamos que nos organizar e a resposta que ouvi de muitos, em geral novos filiados, era que se assim o fizéssemos teríamos mais força para conquistar cargos no governo.

Por outro lado estranhei o fato de ter sido ignorado e até desprezado por alguns militantes antigos e membros da direção. Depois descobri que havia o temor de que eu ocupasse o lugar deles. Parece uma bobagem, mas foi isso que ouvi da quase unanimidade das pessoas com as quais me queixei. Quer dizer, antes um novo militante que chegasse com vontade de ajudar a organizar o partido era saudado com alegria e entusiasmo. Hoje ele é visto como concorrente. Como um intruso no feudo político daqueles que se consideram donos do partido ou se utilizam dele para seus interessesx inconfessáveis.

Outro exemplo absurdo. Quando cheguei há sete meses fui à sede do partido para conhecer e me apresentar aos camaradas. Como sou jornalista me propus ajudar na área de comunicação do partido. O camarada que me atendeu, que é da direção de uma das cidades-satélite, não entendeu nada e mandou-me deixar o currículo, pois se tivesse algum deputado ou senador do partido precisando de jornalista ou se tivesse alguma vaga no governo Agnelo ou no governo Dilma me chamariam. Ora, eu estava ali me colocando como militante e não procurando emprego! Quando voltei para Brasília vim com emprego e sou remunerado o suficiente para me manter e a minha família. Depois descobri que essa era a rotina da sede do PC do B: receber diariamente dezenas de pessoas pedindo emprego. Era novembro de 2010, Dilma e Agnelo tinham acabado de vencer no segundo turno e os nossos novos filiados e até antigos militantes estavam todos afoitos, enlouquecidos em busca de uma boquinha nos governos federal e distrital.

Que tipo de educação estamos dando para nossa militância?

Aliás, onde está a nossa militância em Brasília? Não a temos organizada. O partido no Distrito Federal não tem organização nenhuma. Pelo menos do tipo leninista que aprendemos e defendemos. Ou teremos que também abandonar esse tipo de organização para abraçarmos a outra forma que leva muitos a só desejar cargos nos governos e se apegar às direções?

Expressei minha preocupação a um antigo militante partidário, que foi parlamentar e membro do Comitê Central. A sua resposta foi tão desanimadora quanto assustadora: “Sabe aqueles bancos que não têm agências para atender as pessoas? São chamados de ‘bancos aéreos’, que ficam nos andares superiores dos edifícios e só cuidam de investimentos? Então, o PC do B aqui é assim. Não precisa de bases”. Inacreditável, mas foi o que o camarada me respondeu.

O nosso partido está se conduzindo por um fisiologismo puro e simples. É cruel a constatação, mas só não vê quem não quer. O documento que conclama o Encontro sobre Questões do Partido, trata, a meu ver, eufemisticamente desse tema. È certo que tais preocupações ocupam o Comitê Central, em especial a Secretaria de Organização. A iniciativa é de extrema importância para a organização partidária. Mas penso que esse debate tem que ser mais aberto e aprofundado.

É sintomático, por exemplo, a prática sempre recorrente dentro de nosso partido em relação às alianças políticas e as negociações de cargos. É lícito exigir cargos numa negociação política? Sim, é! Somos um partido político, uma força política e se estamos nessa atuação institucional é legítimo termos a responsabilidade por também governar. Mas isso não pode ser a única finalidade em nossa prática política cotidiana.

Acredito que todos esses direcionamentos que o PC do B vem adquirindo não contribuem para a construção do novo homem que tanto defendemos. Ou não defendemos mais isso?

É nesse bojo que vem a insistência de alguns camaradas, infelizmente do Comitê Central, em trocar o nosso tratamento para “companheiros e companheiras”

Quando os reformistas em 1961 acabaram com o Partido Comunista do Brasil e criaram o Partido Comunista Brasileiro, que significado adquiriu a palavra “brasileiro” aí? Ela foi o emblema das novas posturas políticas e ideológicas dos antigos camaradas. Se não o fosse, nossos verdadeiros camaradas não teriam reorganizado o Partido Comunista do Brasil em 1962, resgatando o “do Brasil”. Parece simples? Mas seria conveniente observar toda a simbologia do resgate desse nome. Quando a Ação Popular teve que incorporar a composta “marxista-leninista” em seu nome, que significado teve esse novo nome na gloriosa organização que viria mais tarde se incorporar ao PC do B em 1972?

Quando deixamos de ser camaradas e passamos a ser “companheiros”, como Lula chama seus colegas de partido e até o grande empresariado com o qual se articulou ou não em seu governo, que significado tem isso? É uma bobagem? É algo subjetivo? É saudosismos dos que, como eu, ingressaram no partido ainda no final da década de 70?

Penso que, mais que a questão semântica trata-se uma inflexão que abriga uma estratégia que ainda não entendi e por ainda não entender fico imaginando ser uma nova conduta política e ideológica. E, o mais grave, uma nova orientação que não está sendo discutida abertamente dentro do partido. E isso é desonesto para com o conjunto da militância. É, em suma, um desvio ideológico e um emblema dos métodos de direção que transparece no cotidiano partidário.

Se continuarmos assim, logo deixaremos de ser o “Partido do Proletariado” e passaremos a ser o “Partido dos Trabalhadores”. Do ponto de vista da semântica não há problema nenhum.

João Negrão, militante do PC do B

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