O Pessoa e o esquadrão da morte
O desprezo pela polícia militar tinha uma explicação. Os PMs batiam nos amigos e matavam qualquer um. Naquele começo dos anos 70, a molecada gostava de caçar passarinho e codornas selvagens nas matinhas de cerrado nas beiradas do poção do córrego Botafogo, onde a molecada do bairro ia nadar, nas proximidades do Automóvel Clube.
O desprezo pela polícia militar tinha uma explicação. Os PMs batiam nos amigos e matavam qualquer um. Naquele começo dos anos 70, a molecada gostava de caçar passarinho e codornas selvagens nas matinhas de cerrado nas beiradas do poção do córrego Botafogo, onde a molecada do bairro ia nadar, nas proximidades do Automóvel Clube.
Alguns anos depois seria construído no
local o Estádio Serra Dourada. E era bem ali que costumávamos deparar com
corpos desovados. Um pavor, mas a gente sempre aparecia por lá e
invariavelmente tinha aquele cheiro horrível de lixo com ossos queimados, que
não tínhamos a menor noção se era de cachorro morto ou de corpo de gente.
Um dia tivemos a notícia de que um corpo
esquartejado havia sido distribuído por vários pontos Praça Cívica, em Goiânia:
o tronco foi parar na escadaria do Fórum, uma perna para a porta do TRE, a
outra no portão da prefeitura, um braço ficou perto da guarita do Palácio
Esmeralda, o outro ninguém encontrou e a cabeça foi entregue a um juiz
embrulhada numa caixa de presente.
Eu e os amigos não tínhamos a menor
consciência do porquê de tantas mortes. Ouvíamos que tudo era obra de “um
esquadrão” e que as autoridades diziam que podia ser coisa de subversivos do
tipo que guerreavam em Xambioá. Até que aconteceu uma coisa muito louca para
todos nós: o Pessoa foi preso. “Como, o Pessoa? Mas ele não é da polícia?” Para
nós polícia ser preso era coisa de outro mundo.
Mas é que ninguém desconfiava que o
Pessoa, aquele cara grandão que gostava de brincar de bola com a gente e os
irmãos dele no campinho da torre (ficava debaixo da torre de alta tensão) perto
da serraria, que era cabo da PM, fazia parte do tal “esquadrão da morte” e que
os corpos que a gente encontrava na matinha onde hoje fica o Serra Dourada eram
a maioria suas vítimas.
O baque foi grande para todo mundo, medo
para tudo quanto é lado. Tempos depois fiquei mesmo foi com pena da família do
Pessoa, principalmente dos seus irmãos, que eram colegas de jogar bola no
campinho da torre. Eles foram estigmatizados, xingados na rua, na escola e todo
mundo evitava passar perto da casa deles, que ficava ali meio apertada entre as
ruas Taubaté e Cruz Alta, bem em frente ao campinho.
Tinha um capinzal bem alto ali e fizeram
até um mutirão para limpar o mato que cobria a trilha por onde todo mundo
passava vindo das proximidades do Colégio Assunção, no Jardim Brasil, onde ficava
o ponto de ônibus mais próximo para nós que morávamos quase perto da rodovia BR
153.
O temor é que o Pessoa fugisse da
cadeia e matasse algum vizinho. Paranoia total. Até que um dia eis que o Pessoa
aparece do nada, justamente no campinho, organizando uma pelada com os
vizinhos. Foi quando um carro passou por lá e o levou para nunca mais voltar.
Seu corpo foi encontrado bem do outro lado da matinha do Serra Dourada, quase
lá perto do Setor Pedro Ludovico. Depois disso, a família do Pessoa mudou do
Novo Mundo e ninguém mais ouviu falar deles.
Mais tarde a minha consciência política
me revelou que os esquadrões da morte atuavam com grande freqüência e
desenvoltura por todo o país na época da ditadura militar. Eram obras daqueles
tempos sombrios, dos anos de chumbo, cuja violência e a impunidade dos
aparelhos repressores permitia uma atuação amplificada no aparelho policial contra
a própria sociedade, contra o próprio povo, potencial inimigo dos ditadores.
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