segunda-feira, 31 de março de 2014

A ditadura militar e minha vida - parte 4

Aulas de inglês, abaixo-assinado e cantores "internacionais"

Fora dos que portavam armas e algemas, havia toda a sorte de gente nos vigiando. Na escola, no bairro, na igreja. Uma simples reunião na associação de moradores era proibida e um mero abaixo-assinado quase custou a prisão do meu pai e da professora Enilda.

José Orozimbo, o seu Negrão, teve que prestar
 depoimento à polícia por causa de um
simples abaixo-assinado
A professora Enilda Garcez Lima era uma dessas almas iluminadas que passam pela vida da gente e nunca saem. Ela lecionava Estudos Sociais para a 5ª, 6ª, 7ª e a 8ª séries, se não me engano. Mas era também professora de inglês numa escola particular no Setor Sul, onde morava. Não havia na nossa escola pública o ensino de inglês e a turma era louca para estudar a disciplina. Então ela se propôs a nos ensinar todas as tardes de sábado.

E as aulas de sábado foram aumentando, alunos de outras séries queriam também aprender. A professora Enilda não dava só aulas. Ela também organizava brincadeiras, apresentação de músicas (foi aí que surgiu o cover mirim do Secos & Molhados), recitais de poemas e esquetes teatrais (foi aí que me inspirei a criar o meu grupo de teatro Pé na Terra).

Nas aulas quem quisesse levava uma letra de música em inglês que ela ensinava a partir das músicas. Nunca consegui emplacar Time, do Pink Floyd, e Child in Time, de Deep Purple, que eram as bandas que, ao lado de Secos & Molhados e Jackson Five, faziam a minha cabeça e a da minha turma na época. As meninas, fãs de Pholhas, Morris Albert e de Chrystian, acabavam emplacando as músicas delas, especialmente Fellings, grande sucesso daqueles idos de 73.

Chrystian, aliás, era pseudônimo norte-americanizado do, na época, um garotinho goiano de nome bem brasileiro, José Pereira da Silva, que fazia sucesso cantando em inglês, como boa parte de cantores brasileiros que só alcançavam a fama se cantassem em inglês, dado ao nível de colonização cultural que estávamos submetidos naquela época da ditadura. Foi assim também com o próprio Pholhas, com Fábio Junior (Mark Davis), Maurício Alberto (Morris Albert), Jessé (Christie Burgh), Sérgio Reis (Johnny Jonson) e muitos outros

Toda a movimentação na Escola Bárbara Souza de Moraes acabou causando um reboliço no bairro e das aulas a coisa evoluiu para um movimento cultural que começou a ser olhado com suspeitas por reacionários dentro e fora da escola. Até que chegou a ordem da Secretaria de Educação de Goiânia para acabar com as aulas da professora Enilda.

Revoltados, pais a alunos se mobilizaram para evitar o fim das aulas. Então vem a determinação para demitir a professora. Foi aí que meu pai entrou em ação. Organizou um abaixo-assinado que mobilizou toda a comunidade e a associação de moradores. Mas a direção da escola, que cumpria “ordens de cima”, não podia fazer nada.

No final a professora Enilda perdeu o emprego e ainda teve que ir, junto com meu pai, depor na polícia. Alguns dias depois apareceram uns caras estranhos na escola e todos os alunos da sétima e oitava séries foram chamados um a um na sala da diretoria para responder perguntas. E depois, tudo que organizamos sob a orientação da professora Enilda teve que ser desfeito. Até o cover de Secos & Molhados, que àquela altura já estava famoso no bairro.


Nenhum comentário: