sábado, 29 de março de 2014

A ditadura militar e minha vida – parte I


Primeira infância à beira do lago Paranoá

Quando a minha mãe de pegação, dona Jovina, me arrancou de dentro de minha mãe, a baiana de Mundo Novo dona Clarice Laura, descendente dos índios cariri, o Brasil vivia uma democracia plena. Eu nasci num barraco de tábua e teto de zinco bem de trás do Palácio Alvorada, exatamente do outro lado do Lago Paranoá.

Onde já era prevista a existência do Parque Dom Bosco e da sua turística Ermida, havia o acampamento da Coenge, uma das empreiteiras que construíram Brasília, na qual estava fichado o paulista de Guarulhos José Orozimbo, chefe de um dos caminhões melosa da companhia, apelidado “Negrão” pelos colegas de trabalho, tão retinta era a cor de sua pele de filho de ex-escravizado com uma descendente de italiano e africana.

Esta história começou em 24 de junho de 1960, numa noite fria, iluminada por uma fogueira ao lado do meu barraco, enfeitado por um mastro de São João Batista e embalada pela sanfona do vizinho e os barulhos dos fogos do outro lado do lago e das bombinhas da molecada do acampamento.

Eu não queria sair da barriga da minha mãe e a madrinha-parteira teve que enfiar o joelho no ventre de Clarice Laura até que eu cedesse. Nascimento difícil e risco para a vida de mãe e filho. A quase tragédia acabou gerando uma promessa: o cabelo do rebento não será cortado até os sete anos de idade e por mesmo período uma fogueira deve ser acesa e um mastro de São João alçado todos os anos, naquela data, naquele mesmo lugar.

Enquanto isto a promessa de um Brasil desenvolvido, cinqüenta em cinco anos, queria ser cumprida. A um custo pesado para a soberania, mas...

A inauguração de Brasília era uma das provas das ousadias de JK, que, no entanto, estaria para findar seu governo, que veio o sucessor Jânio Quadros, que renunciou, que veio o vice João Goulart, que quase não assume, vem parlamentarismo, vem ameaça de golpe, volta o presidencialismo, Jango no poder, reformas de base, reforma agrária nas margens das rodovias, promessas de melhoria da vida do povo, discurso na Central do Brasil, até que vem o golpe.

E o golpe militar de 64 me pega aos três anos e nove meses de idade. Minha memória mais antiga guarda apenas rumores e barulhos de aviões naquele céu muito empoeirado de uma Brasília mal acabada, que engrossava o catarro de menino sempre gripado, com a coriza marcando duas divisões do nariz até a boca no rostinho sujo.


Quase cinco anos depois estou com meu pai na praça da estação de Juiz de Fora, cidade mineira onde a Coenge foi construir uma rodovia em Linhares. A notícia de prisões e torturas no Batalhão de Infantaria local marcou-me para sempre. No início a curiosidade de ouvir meu pai e seus colegas de trabalho cochichando. Tinha que falar baixo e em lugares reservados para não serem descobertos pelos “homens”.

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