Primeira infância à beira do lago Paranoá
Quando a minha mãe de pegação, dona Jovina,
me arrancou de dentro de minha mãe, a baiana de Mundo Novo dona Clarice Laura, descendente
dos índios cariri, o Brasil vivia uma democracia plena. Eu nasci num barraco de
tábua e teto de zinco bem de trás do Palácio Alvorada, exatamente do outro lado
do Lago Paranoá.
Onde já era prevista a existência do
Parque Dom Bosco e da sua turística Ermida, havia o acampamento da Coenge, uma
das empreiteiras que construíram Brasília, na qual estava fichado o paulista de
Guarulhos José Orozimbo, chefe de um dos caminhões melosa da companhia,
apelidado “Negrão” pelos colegas de trabalho, tão retinta era a cor de sua pele
de filho de ex-escravizado com uma descendente de italiano e africana.
Esta história começou em 24 de junho de
1960, numa noite fria, iluminada por uma fogueira ao lado do meu barraco,
enfeitado por um mastro de São João Batista e embalada pela sanfona do vizinho
e os barulhos dos fogos do outro lado do lago e das bombinhas da molecada do
acampamento.
Eu não queria sair da barriga da minha
mãe e a madrinha-parteira teve que enfiar o joelho no ventre de Clarice Laura
até que eu cedesse. Nascimento difícil e risco para a vida de mãe e filho. A
quase tragédia acabou gerando uma promessa: o cabelo do rebento não será
cortado até os sete anos de idade e por mesmo período uma fogueira deve ser
acesa e um mastro de São João alçado todos os anos, naquela data, naquele mesmo
lugar.
Enquanto isto a promessa de um Brasil
desenvolvido, cinqüenta em cinco anos, queria ser cumprida. A um custo pesado
para a soberania, mas...
A inauguração de Brasília era uma das
provas das ousadias de JK, que, no entanto, estaria para findar seu governo,
que veio o sucessor Jânio Quadros, que renunciou, que veio o vice João Goulart,
que quase não assume, vem parlamentarismo, vem ameaça de golpe, volta o
presidencialismo, Jango no poder, reformas de base, reforma agrária nas margens
das rodovias, promessas de melhoria da vida do povo, discurso na Central do
Brasil, até que vem o golpe.
E o golpe militar de 64 me pega aos três
anos e nove meses de idade. Minha memória mais antiga guarda apenas rumores e
barulhos de aviões naquele céu muito empoeirado de uma Brasília mal acabada,
que engrossava o catarro de menino sempre gripado, com a coriza marcando duas
divisões do nariz até a boca no rostinho sujo.
Quase cinco anos depois estou com meu
pai na praça da estação de Juiz de Fora, cidade mineira onde a Coenge foi
construir uma rodovia em Linhares. A notícia de prisões e torturas no Batalhão
de Infantaria local marcou-me para sempre. No início a curiosidade de ouvir meu
pai e seus colegas de trabalho cochichando. Tinha que falar baixo e em lugares
reservados para não serem descobertos pelos “homens”.
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