Confrontos com o chefe da milícia, relatados por um dos jovens brasilienses que foram servir à Polícia Militar de Mato Grosso. Confira a terceira parte da reportagem.
Por João Negrão
Outro
que virou inimigo de Lepesteur foi Justino, mas por outra vertente. Inúmeras
vezes demonstrou descontentamento com a vida que levava e, apesar de estar
subordinado a outro comando do braço armado do crime organizado, o coronel
frequentemente lhe dava ordens. Justino não gosta de falar sobre a hierarquia
da “máfia”. Menciona Lepesteur apenas como um homem forte dentro da “estrutura”
e mesmo assim porque ele já é falecido. Quem estava imediatamente acima do
pistoleiro e muito menos no alto do comando, ele prefere não se referir. “Deixa
quieto”, se limitou a dizer, fazendo um jogo de corpo aparentemente tímido, com
a cabeça baixa, o rosto meio virado e o olhar cabisbaixo. A intriga do coronel
com Justino era por conta justamente da rebeldia do soldado em obedecer suas
ordens, em geral contrariando seu imediato.
João
Arcanjo Ribeiro estruturou e controlou o crime organizado em Mato Grosso de uma
forma tão centralizadora que nada fugia ao seu comando pessoal ou por meio de
seus prepostos. A estrutura envolvia ações em diversas frentes: o jogo do
bicho, a agiotagem (incluindo factorings), o roubo de cargas, os grandes
assaltos, os caça-níqueis e o tráfico de drogas. Estes dois últimos tinham
algumas particularidades. O negócio das máquinas de caça-níqueis foi um dos
últimos empreendimentos do “comendador” e o que lhe daria mais dor de cabeça, o
que veremos adiante. Já o tráfico de drogas não estava diretamente sob seu
controle, apesar do envolvimento dos diversos grupos a ele subordinados nesta
ação e com ramificações internacionais.
O cobrador
Justino pertencia a um dos grupos de cobrança da agiotagem, que era o que mais se expunha, já que estava diretamente em contato com devedores de Arcanjo. Muito raramente encobriam os rostos e estavam abertamente em ação contra os “maus pagadores”, em geral empresários e políticos mato-grossenses. A tarefa era intimidar os devedores, quase sempre com muita violência física e não raro com sequestros dos endividados ou de seus parentes, cárcere privado e, em casos extremos, a execução pura e simples, como exemplo para os demais.
Justino pertencia a um dos grupos de cobrança da agiotagem, que era o que mais se expunha, já que estava diretamente em contato com devedores de Arcanjo. Muito raramente encobriam os rostos e estavam abertamente em ação contra os “maus pagadores”, em geral empresários e políticos mato-grossenses. A tarefa era intimidar os devedores, quase sempre com muita violência física e não raro com sequestros dos endividados ou de seus parentes, cárcere privado e, em casos extremos, a execução pura e simples, como exemplo para os demais.
Já
Lepesteur estava diretamente ligado aos executores, aos militares exímios
atiradores, muitos deles escolhidos a dedo pelo coronel. Eram atiradores de
skol, os snipers, parte de uma elite muito respeitada dentro da corporação,
aqui com as duas frentes – a “boa” e a “má”. “Pistoleiro bom não pode errar um
tiro. Deve ter sangue nos olhos e gelo nas veias”, costumava bradar com seus
comandados, segundo Justino. Por outro lado, retratava um coronel da linha
oficial, Lepesteur e seus homens não tinham a mesma coragem quando o assunto
era enfrentar bandidos ferozes.
Numa
rebelião de um dos maiores presídios de Mato Grosso, o do Carumbé, lá estava
Lepesteur de serviço. Os presos rebelados, como sempre, faziam reféns e
ameaçavam matar todos se suas exigências não fossem atendidas. Era o ano de 1986. Escalado para enfrentar a
rebelião, o então major Lepesteur chegou na porta do presídio e disse que não poderia ajudar
porque tinha uma viagem marcada para São Paulo. “Dali ele foi embora. Outros
oficias e aspirantes se apresentaram, mas quando viram a gravidade do problema se
recusaram a entrar”, lembra um oficial, que já foi um dos mais importantes
homens da corporação na estrutura governamental de Mato Grosso.
“Coragem
teve mesmo foi o então o aspirante Taboreli (Pery, hoje coronel e deputado
estadual eleito pelo PV), que se apresentou como voluntário e pulou com a tropa
lá onde estava o refém e acabou recebendo um tiro no braço, que até hoje não
sabemos a origem do tiro, haja vista nossa total experiência em rebelião em
presídios, e nessa época faleceram treze pessoas, 13 detentos no combate, eu
lembro que choveu muito e uma semana depois o major Eldo Sá veio a falecer que
maltrataram muito ele como refém nos 2 ou 3 dias que ele ficou refém dos
presos, inclusive obrigaram ele nessa época a fumar maconha e ele já tinha
problema do coração e não aguentou. Major Eldo Sá e coronel Amilton Sá Correia
eram referências muito fortes pra nós quando éramos jovens oficiais”, lembra o
coronel, que preferiu não ter seu nome revelado.
Este
episódio ilustra o que era Lepesteur e seus comandos: homens capazes de tudo
contra cidadãos comuns, mas covardes no confronto direto com os bandidos mais
perigosos. “O Lepesteur tinha muita fama, mas nunca vi ele no confronto direto.
Ele mandava. Lembro de uma vez que ele foi retirar os invasores de uma fazenda
em Jauru. Ele encheu dois ônibus da São Cristovão (empresa de transporte),
quebrou todos os vidros do ônibus para dizer que era facilidade de atirar, com
mais de 100 policiais não retirou nenhum invasor. Voltou sem cumprir a missão”,
relata o oficial.
Robusto, forte, carismático, sedutor, uma forte presença de espírito e com uma imposição corporal única, Frederico Carlos Lepesteur passava a imagem de um homem intocável, fora do alcance dos órgãos de controle interno da PM, da Corregedoria, do Judiciário e da imprensa, onde colecionavam simpatias diversas. Nada parecia derrotá-lo.
Nem mesmo o processo que seguiu à prisão do seu chefe, João Arcanjo Ribeiro, depois do assassinato do proprietário do jornal Folha do Estado, Domingos Sávio Brandão (falaremos sobre isto depois), abalou Lepesteur. Sua ruína viria pela força bruta natural de um câncer que acometeu seu ombro e o castigou severamente até se definhar para a morte mais cruel. Um sofrimento possivelmente capaz de se aproximar do de centenas de vítimas que colecionou direta ou indiretamente ao longo de ao menos 25 anos no comando de um exército atroz.
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