quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Rivalidade entre a ‘Turma de Brasília’ e nativos quase provoca guerra em Mato Grosso

Por João Negrão

Jovens de Brasília no 1º Batalhão da PM de Mato Grosso,
palco do que poderia ter sido uma grande tragédia
A “Turma de Brasília” encontrou uma atmosfera hostil em Mato Grosso. Chegou com o sentimento incutido de que eram “salvadores da pátria”, coisa de desde o recrutamento nas cidades satélites de Brasília naquele início de 1982. Além disso, a visão equivocada de que eram “superiores” àquele povo do mato, o mato grosso, tão estigmatizado até nos dias de hoje. Então aqueles moços de Brasília, eminentemente urbanos, chegaram botando banca e isto gerou revolta dos nativos. De outro lado, eles pensavam que iriam encontrar privilégios e nem imaginavam que a disciplina militar não se diferenciava nas divisas de unidades da Federação e que a corporação militar não via local de nascença.

Este confronto ético, moral e ideológico é que fez muita gente desistir e voltar para casa com rabo entre as pernas. Afinal, não era fácil enfrentar o calor infernal, os pernilongos sanguinolentos e a perspectiva de morte em emboscadas nos vários conflitos nas regiões pantaneiras, nas selvas do Nortão mato-grossense e nos confins do Araguaia. É neste contexto que um episódio iria emblemar e divisar as águas nas décadas seguintes da permanência da “Turma de Brasília” em solo mato-grossense.

Quem relata é o coronel Dival Martins, então comandante da unidade de formação de praças da PM de Mato Grosso, então com sede no histórico 1º Batalhão de Polícia Militar, um prédio centenário que foi sede do comando militar brasileiro na Guerra do Paraguai. Foi ali que, relata o oficial, os soldados de Brasília ensaiaram uma rebelião contra seus comandados. A incompreensão que não bastava serem remanescentes do BGP, da PE ou do RCG e da capital da República, confrontou, paradoxalmente, naqueles jovens a realidade de uma disciplina rígida. Afinal, não é por serem oriundos do Exército que teriam privilégios.

Foi o que bastou para que, num rastilho de pólvora, empunhando fuzis, os moços tentaram subestimar seus comandantes e os colegas nativos. O momento de muita tensão durou menos de cinco horas, mas o suficiente para que uma grande tragédia ocorresse, não fosse a serenidade de Martins e outros comandantes da escola militar. O hoje coronel Dival olhou para aqueles jovens não apenas como soldados – armados ou não – e meramente indisciplinados e, sim, como meninos acuados, longe de seus familiares e suas namoradas, sob o estresse de uma guerra iminente e que mereciam mais que o ferro da disciplina. Necessitavam de carinho. “Conversarmos com eles e tudo se resolveu. Se a decisão fosse o confronto, haveria um banho de sangue”, relata o oficial.

O coronel Dival Martins é um homem que construiu uma bela história na Polícia de Mato Grosso, como seu comandante e como um de seus principais teóricos. Vamos falar dele mais adiante. Vamos também reconstituir a trajetória de outros oficiais, como Walter de Fátima, que com igual perfil honraram e honram suas histórias. Hoje Dival Martins curte sua aposentadoria de forma serena, ao lado da filha caçula e no comando da Cruz Vermelha daquele estado.

Retomando à movimentação daqueles dias, àquela altura dos acontecimentos, começava a se delinear quais seriam os homens que cumpriam as missões puramente oficiais e quais enveredariam pelos caminhos tortuosos dos aliciados pelo capitão Lepesteur. Ele agia nos bastidores. Na cúpula da PM esta atividade marginal era vista com olhos diferenciados. Havia os que repudiavam pura e simplesmente, mas que não se dispunham ao confronto direto. Tinha os que aderiam, nem costumeiramente com atuação real, mas ao menos com a cumplicidade da indiferença. Ocorriam aqueles que se engajavam, criminosamente. E aqueles que ficavam indiferentes, faziam vistas grossas e fingiam que não eram com eles. Correndo por fora, estavam os que iam para o confronto, mas que se precaviam.

Afora estes últimos, todos os segmentos da Polícia Militar de Mato Grosso e os comandantes militares e civis da estrutura de segurança do Estado, eram paparicados pelo crime organizado. Um coronel, hoje aposentado, e que foi uma das maiores referências da corporação, servindo a governos de todos os matizes políticos e ideológicos, revela que todos os comandantes, secretários e subsecretários da área de segurança pública de Mato Grosso sempre “comeram nas mãos” do crime organizado. “Era uma situação constrangedora para nós ver os oficiais receberem cestas de Natal e saber que quem se negava a pegar entrava para a lista negra dos chefões do crime”, lembra o oficial.

Cestas de Natal eram apenas emblemas nestes divisores de águas. O fato é que a corporação estava fatalmente fragmentada entre os diversos grupos de se movimentam pró, contra e em cima do muro destas investidas da parte mais poderosa no aparelho policial. Neste contexto estavam os jovens da “Turma de Brasília”, que em breve seriam mandados para os confrontos nos rincões de Mato Grosso, enfrentando toda a sorte de perigos.


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