segunda-feira, 31 de março de 2014

A ditadura militar e minha vida - parte 5

"Amanhã ninguém precisa vir de uniforme"

Estávamos em 1974. A ditadura, que estava no auge dos seus anos de chumbo de Emílio Garrastazu Médici, ao mesmo tempo entraria num período de ensaio da chamada distensão com o sucessor Ernesto Geisel. Geisel teria vencido uma disputa interna das Forças Armadas que desejavam emplacar um general mais linha dura, no pior estilo Médici.

Eu, no centro, de calça branca, com alguns colegas na minha turma
Ainda ouvíamos falar da “guerra de Xambioá”, mas não ousávamos mais brincar dela nas horas de recreio. Falar daquilo estava proibido. E só fui saber cinco anos mais tarde que a “guerra de Xambioá” na verdade era a Guerrilha do Araguaia, heróico movimento de resistência ao regime militar que, de 72 a 74, combateu nas selvas do rio Araguaia, entre o Norte de Goiás (hoje Tocantins) e Sul do Pará.

Curiosamente fiquei sabendo da tal guerrilha quando servia o Exército em 1979 e, durante as instruções do Pelopes (Pelotão de Operações Especiais) do qual eu fazia parte, o PC do B, que organizou a guerrilha, a ela própria, eram tratados como demônios. E foi justamente isto que me despertou a conhecer mais sobre a luta revolucionária e acabou me levando a conhecer o meu partido e a ingressar nele clandestinamente ainda dentro do 42º Batalhão de Infantaria Motorizada, extinta unidade do Exército em que servi em Goiânia. Mais adiante vou contar esta história.

Voltando à Escola Bárbara Souza de Morais e ao emblemático ano de 1974. Geisel havia assumido em março daquele ano, após o desastre que se seguiu à farsa do “milagre econômico”. A ditadura, que estava no auge, começa a perder terreno devido à desmoralização econômica. A proximidade das eleições parlamentares de novembro daquele ano assustava o regime. Especialmente porque um pouco antes, em julho, a Seleção Brasileira perdeu vergonhosamente a Copa na Alemanha. Como se sabe, a vitória do tri-campeonato em 1970 serviu de propaganda para o regime, que a explorou ao máximo dando o seu viés patriótico e, a partir daí, lançando slogans como “Brasil, ame-o ou deixo-o”.

À crise econômica e à derrota da seleção, soma-se uma epidemia nacional de meningite que matou milhares de brasileiros, especialmente crianças e adolescente, mortes que poderiam ter sido evitadas ou reduzidas sensivelmente se não houvesse a censura, a desinformação e o ranço ideológico. Em outros capítulos também vou tratar especificamente da meningite, da qual eu mesmo fui uma vítima, assim como meus irmãos Carlos e Angélica, que acabaram falecendo daquele ano de 1974.

Era neste contexto que aconteceriam as eleições de 1974, que aliás, formaria o Colégio Eleitoral que escolheria, em março de 1978, os governadores e o presidente da República. A Arena, partido do governo, temia perder terreno para o MDB, e na busca alucinada por votos, seus candidatos começaram a utilizar um artifício que acabava dando efeito contrário.

Naquela época, as escolas públicas, assim como qualquer órgão público, eram loteadas entre os políticos aliados do regime. Assim, todos os diretores e pessoal pedagógico e administrativo estavam ali por indicação política. Não bastasse isto, o vereador, deputado estadual, deputado federal e senador “dono” de determinada escola,  passou a mobilizar funcionários e alunos para participarem de seus comícios no bairro ou em qualquer outro lugar da cidade.

Estranhamos muito quando, num belo dia de meados de 1974, a diretora da Escola Bárbara passou de sala em sala no período noturno informando aos alunos que no dia seguinte ninguém precisava ir de uniforme. “Por que?”, indagamos. Ela não respondeu. Simplesmente reiterou: “Amanhã venha sem uniformes”.

No dia seguinte estávamos todos nós, alegres reunidos no pátio da escola, quando começam a chegar vários ônibus e caminhões. Aliás, mais caminhões, camionetes e até carroças. Sem explicar porque, os professores foram enchendo os veículos e com igual silêncio nos levaram lá do Novo Mundo para a Vila Nova.

No meio do caminho até pensei que fossemos ver o treino do meu time na época, o Vila. Mas que nada. A curtição maior era nos caminhões, feito pau-de-arara, transporte perigoso, mas que fazia a ruaça da molecada.

Chegamos a uma praça, onde havia um palanque e foram chegando mais e mais caminhões e ônibus de gente de vários bairros. Era um comício da Arena, mobilizada por vereadores e deputados “donos” de escolas de toda a região Leste de Goiânia, para aplaudirmos os candidatos à Assembleia Legislativa e à Câmara Federal, mas especialmente candidato a senador da sigla, Manoel dos Reis Silva.

Outras e outras idas “voluntárias” a comícios da Arena se repetiriam até as vésperas de 15 de novembro, data da eleição. Mas aquilo, que causavam indignação, ao mesmo tempo o transformamos em divertimento, já que não passávamos uma semana sem o aviso da diretora: “Amanhã ninguém precisa vir de uniforme”. Era a senha para as meninas vestirem suas roupas de domingo e abusar da maquiagem e para os meninos exibirem suas roupas de ver Deus. E, lógico, a paquera rolava solta e os namoros foram surgindo, antes reprimidos pela vigilância implacável do bedel da escola, o seu João Biriba.

Votos mesmo que era o que os candidatos da Arena queriam inflando falsamente seus comícios não conseguiram. Aquilo tudo foi o tal do feitiço que virou contra o feiticeiro. Manoel dos Reis Silva, que aliás foi candidato da minha mãe, perdeu para senador, sendo eleito o candidato do MDB, Lázaro Barbosa, apoiado por meu pai.

Assim como em Goiás, o MDB elegeu a maioria das bancadas federais na maioria dos estados, sendo nada menos que 16 senadores dos 23 cargos em disputa naquele ano. A derrota de 1974, somado à luta pela redemocratização que ganhava corpo a partir de 1977, com o crescimento da luta pela Anistia, leva o governo Geisel a baixar, em abril deste ano, o famoso Pacote de Abril, criando, entre outras coisas, a figura do “senador biônico”. O temor do regime era chegar em 1978 uma minoria no Congresso Nacional, inviabilizando assim a eleição direta do próximo presidente.  


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