domingo, 1 de dezembro de 2019

Loop e A Batalha de Shangri-lá me encantaram



Os dois longas mato-grossenses estiveram em mostras no 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Por João Negrão

A semana que se passa foi frenética em Brasília. Os acontecimentos que nos fazem acordar diariamente de um pesadelo já engatando em outro, mantiveram o tom na movimentação política incessante. Para quebrar esse ritmo alucinante, que por ora não merece referência, a semana teve o feérico Festival de Cinema de Brasília e nele duas produções de Mato Grosso – Loop e A Batalha de Shangri-lá -, de dois jovens cineastas de Cuiabá, deslumbrando as plateias que as assistiram na quarta (27) e no sábado (30).

Antes de prosseguir, meu registro de amigo e de meio tiozão, pois, ao menos profissionalmente, vi crescer Severino Neto e Bruno Bini no meio publicitário de Cuiabá e o encantamento de ambos pelo audiovisual nas lidas diárias deles, e aqui especialmente a paixão pelo cinema. Cada um a seu modo fez mover suas veredas pela sétima arte e suas construções como roteiristas e diretores.

Tenho comigo que Neto e Bruno carregam a ancestralidade de Amauri Tangará e Luis Borges, em seus pioneirismos e insistência àquela época quixotesca, não muito distante, naquele Mato Grosso que persistia numa fama nefasta. Neto e Bruno são, também, crias, cada um a sua forma, na frequência das mostras e festivais de cinema de Cuiabá. E, ainda, se forjaram emblemas daqueles meninos e meninas que saíram do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), guiados por seus mestres que, em certa medida, foram meus também, mais que colegas.

Aqui em Brasília e pelas minhas não muitas andanças foi fácil perceber que os mato-grossenses em geral e os cuiabanos em particular não deixam a desejar em áreas da Comunicação, estando em paralelo ou mesmo à frente do muito que se faz em termos de publicidade, propaganda, marketing, audiovisual e cinema. Neto e Bruno são provas disso.


E aqui em Brasília estiveram e pude desfrutar de suas companhias e de suas criações. Um dos mais importantes do país e do mundo, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, termina neste domingo em sua 52ª edição. Severino Neto está na Mostra Paralela Território Brasil com o seu A Batalha de Shangri-lá; e Bruno Bini veio com Loop, que participa da Mostra Competitiva. Os dois longas foram muito aplaudidos em suas exibições de estreia no festival.


Loop e A Batalha de Shangri-lá são dois filmes densos, com temas fortes e se desenvolvem em roteiros muito bem elaborados e amarrados. Trago aqui apenas um breve panorama conjunto de um mero espectador e de um orgulhoso fã dos dois diretores.

As duas películas promovem ritmos distintos, com temas distintos e narrativas idem. Mas possuem uma certa identidade. Loop traz a instigante temática da viagem pelo tempo e espaço, costurando uma história de amor densa, próxima ao delírio. Em verdade vi nele mais de uma história de amor. A pegada futurista é o de menos. Há quem o enquadre como filme de ficção científica. Este olhar exclusivo, ou ainda que prioritário, é desonesto. A narrativa circular engaveta mais que tempos e espaços em torno de Daniel.

A Batalha de Shangri-lá é mais intimista, linear e transbordando as emoções, aparentemente contidas, do personagem central e suas buscas, também permite breves círculos. A busca pela mãe já é em si uma emoção que segura a curiosidade do expectador, que vai vagarosamente compreendendo a dramática situação de abandonado do João, até chegar às revelações perturbadoras à medida que são abertas as entranhas de sua origem familiar.

Há identidade entre os dois filmes porque é lícito mais que intuir certas semelhanças entre as duas histórias. O Daniel, de Bruno, se arrisca retornar ao passado para tentar consertá-lo para ser feliz no futuro. O João, do Neto, revolve no presente seu passado, para tentar salvar seu futuro íntimo e inseguro. Outra convergência é a violência doméstica com desdobramentos que acabam por justificar atos e intenções de parte de seus personagens.

Outro aspecto que me chamou a atenção: embora as fotografias possuam em ambos certa aparência, a condução das câmeras traçam particularidades importantes nas percepções da trama. Em Loop Ulisses Malta Júnior conduz as imagens com câmeras fixas e movimentos abertos que permitem ao expectador adentrar de forma leve, ainda que perturbadora, na história.

Em A Batalha de Shangri-lá Marcelo Biss orienta a operação das câmeras na mão, no mais das vezes fechada e com foco quase que exclusivo nos personagens, com as paisagens de fundo desfocadas. Tudo a possibilitas sentir a densidade dramática da história. A tensão está presente a todo o momento e torna o todo igualmente perturbador, mas psicologicamente mais profundo.

Impossível não se sentir um Daniel, com todos os nossos desejos frente a um amor e seus desencontros, em qualquer dimensão, tempo e espaço. A relação quase edipiana com a irmã, a defesa dos entes queridos que possa até justificar sedes de justiça - ou justiçamento. Vejo aí as outras histórias de amor que menciono acima.

Igualmente, a mim particularmente, a identificação com o João vem indiretamente. Pai de dois filhos adotivos, acompanhei com o mais velho, já entrando na fase adulta, suas angustias perante a oportunidade de conhecer a mãe e parte da história de sua vida. O pequeno, na pré-adolescência, começa a fazer os irremediáveis questionamentos: Quem é ela? Onde está? Como vive? Quando poderei conhecê-la?

O João de A Batalha de Shangri-lá terá mais que esta revelação após uma densidade que percorre cada detalhe das imagens, dos enquadramentos e sequências, até que a atrocidade de um Brasil atual nos confronta como um soco na boca do estômago. Corajosamente, Neto escancara ali a hipocrisia, a insanidade religiosa e a crueldade do preconceito.

Assistir Loop e A Batalha de Shangi-lá é um encantamento. A começar porque estamos lidando com cinema de alta qualidade, com nada a dever para ninguém. Depois porque as histórias nos provocam o prolongamento da percepção que só a boa arte é capaz de nos imprimir e ajudar a mudar nossos sentidos, em todas as vertentes. Por fim, porque dá um orgulho danado desses dois “meninos” sensacionais.




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