domingo, 15 de dezembro de 2019

Que blasfêmia, que nada. O que assusta é um Jesus humanizado

Fundamentalistas e homofóbicos não perdoam o Cristo gay e fazem vista grossa para Deus ‘tarado’ por Maria

Por João Negrão

O especial de Natal “A Primeira Tentação de Cristo” é o melhor de todos os especiais feitos pelo canal Porta dos Fundos. É o mais engraçado, mais mordaz, mais crítico, melhor produzido e com atuações espetaculares, destaque para Evelyn Castro, que interpreta Maria. Quem gosta de um bom filme, de humor inteligente, intrigante e instigante não deve deixar de assistir.

Os críticos do especial, desde os mais brandos aos mais histéricos, estão reduzindo o filme à polêmica de um Jesus gay. A obra tem muito mais. Devo pontuar minha percepção geral e lamento que para tanto cometerei um pouco de spoiler. Me perdoem.

O especial traz um Cristo humanizado e é esta condição que na verdade assusta os desavisados e retrógrados de toda espécie. Mesma humanização ocorre com os outros personagens bíblicos que aparecem na sátira. Isto suscita outras reflexões que incomodam muito. E arte é mesmo para incomodar. Humor é para provocar. O resto é mediocridade e tentativa de censura.

A humanização de personagens bíblicos assusta porque, na visão dos crédulos Deus, Jesus, Maria e José, entre outros, não podem ser pessoas comuns como nós, ainda que o Todo Poderoso tenha avisado que nos fez à semelhança dele. A literatura, o teatro e o cinema estão pontilhados de Jesus ou Maria de carne, osso e sentimentos contraditórios, com os quais convivem os mortais. E todas essas obras foram criticadas, censuradas e seus autores perseguidos.

Jesus Cristo e Maria Madalena: no mínimo um amor platônico
O longa “A Última Tentação de Cristo”, obra-prima do diretor Martin Scorsese, mostra Jesus Cristo no deserto abrindo suas entranhas de homem comum, martirizado por desejos, inclusive o sexual. “A Vida de Brian”, do grupo britânico Monty Python, que foi o precursor do humor do Porta dos Fundos, é um filme hilário do início ao fim e mostra o Filho de Deus simplório, ingênuo e displicente. Lembrando que Jesus foi rebatizado de Brian depois de polêmica parecida como a que ocorre agora.

Em “Je vous salue, Marie", Jean-Luc Godard, outro espetacular diretor, transporta a história da Virgem Maria para a contemporaneidade e nos faz refletir sobre machismo e intolerância. Ao mostrar uma Maria num ambiente e comportamento fora dos padrões bíblicos, inclusive sentindo as dores do parto, o filme causou espécie no mundo inteiro e foi proibido aqui no Brasil pelo governo Sarney, que capitulou diante das imposições do Vaticano, à época já comandado pelo ultradireitista João Paulo II.

“O Rei dos Reis”, dirigido por Nicholas Ray, traz uma história em que Jesus divide o protagonismo com Barrabás, apresentado como um comandante guerrilheiro da resistência da ocupação da Palestina pelo Império Romano.

Antes de ser Sagrada, a Bíblia é também um documento histórico e o Novo Testamento, mais que mostrar parte da vida de Jesus e seus ensinamentos, é um relato brutal do imperialismo de Roma, que não ocupou países e dominou povos impunemente. Houve resistências armadas.

Falando em guerrilheiro, na ópera-rock “Evita”, encenada nos palcos do mundo inteiro, que depois virou filme pelas mãos de outro diretor sensacional, Alan Parker, Jesus é nada mais nada menos que Ernesto Che Guevara. A peça é de autoria de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice, os mesmos que escreveram outra ópera-rock genial: “Jesus Cristo Superstar”, que também encantou plateias no mundo inteiro e ganhou as telas sob a direção de Norman Jewison.

O Judas que é o herói da resistência e a consciência política que Jesus hippie não tem na famosa ópera-rock
“Jesus Cristo Superstar”, além de deslocar o Filho de Deus para um ambiente hippie do início da década de 70, traz outras abordagens sobre o texto bíblico, colocando Judas, por exemplo, em amplitude quase paritária com o personagem central. Para além disso, o traidor mais famoso da história da Humanidade aparece aqui como um herói. Da mesma forma que em “O Rei dos Reis”, Judas é a consciência política que Jesus não tem na necessária luta contra a opressão de seu povo.

Ao trazer novas abordagens para o texto bíblico, “A Primeira Tentação de Cristo” não tem, portanto, ineditismo. Seu valor, a meu ver, é o que pontuei acima, no primeiro parágrafo. Os retrógrados dos mais variados tipos não gostam da arte e do humor que nos perturbam e nos provocam a olhar o mundo fora dos padrões que os que gostam de controlar mentes e corpos insistem em estabelecer. E detestam mais ainda a interpretação política e não alienante, sobretudo, do Novo Testamento.

Eu tenho a dúbia impressão que os fundamentalistas não viram e viram o especial. Se viram não quiseram entender. Porque não há, da parte deles, uma defesa da fé cristã, como propagam. Essa turma (reparem que boa parte é deputado) é alienada e reacionária por natureza. Se tivessem assistido – ou visto e prestado atenção - a preocupação não se restringiria ao Jesus gay.

Vamos atentar para o fato de que o especial “A Primeira Tentação de Cristo” traz outra versão da passagem de Jesus pela quarentena no deserto, como lá no relatado “A Última Tentação de Cristo”. Tanto no primeiro como no segundo, Ele foi instigado a várias tentações. Em a “Última” sugere-se um amor e desejo carnal por Maria Madalena. Em “A Primeira”, a versão satírica do Porta, o amor é a um homem, no caso o Orlando, que vamos constatar mais adiante ser o capeta em figura de gente.

Os fundamentalistas – se é que assistiram, ó dúvida! – poderiam ter aqui um forte argumento para sua defesa da “cura gay”. Jesus estaria naquela condição porque o diabo o tentou e, na prática dos pastores neopentecostais, bastaria retirar o demônio do corpo de Cristo que a coisa estaria resolvida.

O Deus Antônio Tabet e a Maria Evelyn Castro estão espetaculares
Se assistiram de fato ao filme, os crentes neopentecostais, esses mais raivosos, poderiam se indignar ainda mais. Digamos que tenham assistido. Isto reforça a postura patriarcal, machista e misógina deles. Enquanto os fundamentalistas e homofóbicos não perdoam aquela tentação homoafetiva de Cristo, fazem vista grossa para Deus “tarado”, assediador de Maria.

É hilária a rivalidade entre Deus e José, que claramente vê no Supremo Criador um concorrente ao amor e, especialmente, ao sexo com Maria. Genialmente interpretado pelo conservador Antonio Tabet, o Deus do Porta é um ser irônico, sarcástico, dissimulado e levemente mau e maldoso. O filme brinca (se é que se pode brincar com o sagrado!) com o fato de Jesus ser filho de Deus e não de José e mostra o Todo Poderoso querendo fugir com Maria para viverem outra história e terem desta vez uma filha.

Vou parar por aqui porque a tentação do spoiler me domina o corpo e a alma. Tenho que conter este desejo. Aliás, desejos, para os reacionários, não devem existir nem para mortais, o que dirá para Jesus e outros personagens bíblicos.

Finalizo com a clássica pergunta: quem nunca foi tentado a nada que atire a primeira pedra.

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