Por João Negrão
O Brasil está em
festa. Afora os setores mais reacionários, os fascistas e os
golpistas em geral, aqueles que direta ou indiretamente ajudaram a
derrubar a presidente Dilma Rousseff. Mas mesmo a Rede Globo, uma das
principais patrocinadoras do golpe de 16 deu boa matéria sobre o
assunto que ganha a última segunda-feira (13).
A indicação do
festejado “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, é, sem
nenhuma dúvida, duas grandes. A primeira do cinema nacional,
ultimamente tão atacado e desprezado pelo presidente fascista Jair
Bolsonaro e seus seguidores. A segunda vitória é o escancarar para
o mundo, desta vez em forma de película, o que foi o golpe de 2016.
Sem dúvida é um
documentário espetacular. Contudo, possui limitações diante de
minhas expectativas e da fatal comparação com outro documentário
espetacular sobre o mesmo tema, “O Processo”, de Maria Augusta
Ramos. Escrevi sobre isto quando assisti “Democracia em Vertigem”
em seu lançamento.
Na verdade, como
havia frisado, não há como fazer uma comparação, posto que se
tratam de dois filmes espetaculares diferentes, com suas
particularidades do ponto de vista técnico, conceitual e artístico.
Sim, porque, ainda que seja um documentário, ali as diretoras
empregam toda a sensibilidade artística para contar a história.
Nesses aspectos não me foi prioridade o olhar, ainda que lhe
menciono.
A comparação, no
entanto, cabe na forma como as duas diretoras contam a história e
seus vieses políticos que fatalmente sobrepõem aos demais aspectos
para mim enquanto expectador e testemunha ocular da mesma história.
Agregue-se aqui a minha posição política e ideológica.
Os dois filmes são
espetaculares na narrativa, no ineditismo para um documentário - que
como jornalista gosto de dizer: uma grande reportagem. Contudo dou um
ponto para “O Processo”, que não tem nada de narrador, a não
ser as imagens percorrendo a cronologia dos fatos, eles contados por
seus protagonistas – ou ao menos aqueles que se dispuseram ser
entrevistados. Para não ser tão antipático, arriscaria dizer que
um completaria o outro, como na realidade pode-se verificar quem
assistiu aos dois.
“Democracia em
Vertigem”, porém, tem seus grandes méritos. A narrativa, por
exemplo, com a diretora contando em primeira pessoa a história
desses últimos cinco anos da vida nacional e indo buscar no seu
atavismo os entrelaçares de sua própria história, desde seus
primeiros anos em 1985, ano da redemocratização, de seus pais e
demais parentes – a rica família Andrade Gutierrez - envoltos nos
acontecimentos anteriores e atuais do país.
Ela começa, por
exemplo, falando da luta dos pais num Brasil mergulhado na escuridão
dos anos de chumbo, com eles presos, torturados, exilados e depois
clandestinos. Em sequência vem nos contar que seu nome, Petra, é
uma homenagem a Pedro Pomar. Mas não exatamente menciona ser este o
líder comunista trucidado pela ditadura em 1976 no conhecido e
triste episódio Chacina da Lapa, onde os militares destruíram
metade do comitê central do Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Petra Costa, aliás,
“passeia” de forma displicente sobres esse momento nefasto da
História Nacional, contextualizando muito pouco o que significou a
luta dos próprios pais. Fica parecendo que houve, aos olhos dela
(que pode não ter atentado melhor) que foi uma luta menor. Mesma
percepção ela não dispensa ao moralismo anticorrupção.
Aqui eu fico com as
palavras de psicanalista e entrevistadora da TV 247, Dafne Ashton
Vital Brazil: “Apesar de ter imagens históricas como o discurso de
defesa da Dilma e do Lula falando com o povo em São Bernardo, o
filme ‘Democracia em Vertigem’ infelizmente adota a narrativa
moralista em relação à guerra anticorrupção, que foi justamente
usada para nos derrotar. Enquanto a esquerda não entender que não
leva a nada esse moralismo, e ele é a nossa derrocada, fica difícil
avançar. Sempre, em todos as épocas, o moralismo foi usado contra a
esquerda. Precisamos aprender com isso para não cair nessa narrativa
esparrela. Corrupção nesse país só existe se for cometida por nós
e mais, corrupção é inerente ao sistema capitalista e ponto. Fora
esses parênteses, tem as imagens maravilhosas, vale assistir”.
Eu acrescentaria
que, além da narrativa moralista anticorrupção, “Democracia em
Vertigem” tem o viés despolitizado transparecido da própria Petra
Costa, o que é desagradável para uma pretensamente politizada. Por
vezes quase chorosa, ela tenta transitar por um certo imparcialismo e
oferecer uma análise ampla e não rara amplificada dos processos
antes, durante e pós impeachment de Dilma Rousseff, até dar lá nos
momentos anteriores e durante a entrega de Lula após a resistência
no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. É aqui que vamos
encontrar, em termo de cinema, sobretudo imagens, parte dos méritos
do documentário, como uma grande reportagem: as imagens inéditas,
bem como as conversas de Lula com seus aliados e os desdobramentos
até ele seguir para Curitiba no helicóptero da Polícia Federal
para a solitária.
No resto, Petra
Costa faz uma narrativa recuada, quase que se pedindo desculpas por
termos um partido popular e progressista que chegou ao poder,
“cometeu erros” e deveria se penitenciar para sempre, colaborando
com a narrativa das forças que tentam sempre destruir o país e não
se cansam de exigir autocrítica de Lula e do PT. Petra, aliás, é
muito pouco crítica a essas forças e, é possível perceber, uma
certa complacência ante elas à medida que não aprofunda (seria por
conta de sua despolitização?) no significado da atuação dessas
forças na destruição da democracia brasileira. É um painel.
Ela é por vezes
romântica, idealista e, repito, chorosa. É lícito preencher essa
carga emocional num filme, mesmo um documentário, com traço, porém,
de autobiografia. É, aqui oportuno, intuir sua pretensão: carregar
nas emoções para fisgar o espectador. E até mesmo considerar que
esse seu propósito margeia a obra para lhe conferir um caráter
romântico. E ainda nos permitir, em seu mosaico de imagens e vozes,
o prolongamento da percepção e fazer a todos refletir. Mas insisto:
politicamente eu esperava muito mais.
De todo modo,
“Democracia em Vertigem” é um filme que merce ser visto e
revisto. Como “O Processo”, ele é mais que um documentário, um
relato, pois antecipa a prospecção história de um período que
abriu uma cicatriz enorme na política brasileira. Ajudam no debate e
na consciência cidadã. Que venha o Oscar!
João Negrão é
jornalista em Brasília
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